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As serpentes e a pimenta do seu almoço

Se você pudesse ver com a sua pele, como seria o seu mundo?



Que as serpentes tenham orifícios ao redor da boca capazes de captar o calor proveniente de suas presas, tudo bem, não é mesmo? Ok, isto por si só não é nada trivial, e nos lança para o outro lado, para um universo de possibilidades e mistérios da realidade de outros seres não-humanos. Curiosamente, há um elo entre nós e as serpentes e você está coberto com ele agora mesmo...





Os superpoderes das serpentes


Os orifícios ao redor do focinho das serpentes são chamados de fossetas loreais. Eles são revestidos no interior por células com sensores térmicos e são esses sensores térmicos que conferem a elas a visão infravermelho que comentamos. Muitos herpetologistas (estudiosos dos répteis e anfíbios) comentam sobre o quão vantajoso é para estes predadores possuir este sentido extra. As presas das serpentes são normalmente pequenos mamíferos de sangue quente, que possuem hábitos noturnos. Nestas circunstâncias, com pouca luz disponível, tornou-se extremamente vantajoso detectar o jantar com outros sentidos.


Mas o surpreendente é que estes detectores utilizados por elas possui uma longa história evolutiva, e por causa disso, ele também se encontra em nós. Sim, nós possuimos também detectores de radiação infravermelha, porém, os nossos não estão em orifícios na cabeça, mas sim, na nossa pele! Mais especificamente, nos terminais nervosos presentes na nossa pele. Que tal?


Trocando em miúdos: os receptores de calor presente nas serpentes é da mesma família do que aqueles que possuímos na nossa pele e que nos permitem sentir as diferenças de temperatura do ambiente. Com uma surpresa dessas, começamos a enxergar um pouco mais além nas conexões biológicas... O que mais podemos explorar?



Pois bem... Estes “sensores”, que são receptores feitos de proteínas, são da família TRP (transient receptor potential). Eles ficam espalhados pelo nosso corpo e, inclusive, são os mesmos que respondem às moléculas de capsaicina presentes nas pimentas e que nos fazem ter a sensação de queimação na boca. Na serpente, veja que interessante, eles não são utilizados somente para que o animal sinta estímulos autorreferentes (de si para si), mas alorreferentes, ou seja, do mundo externo para o indivíduo.


Partindo desta primeira diferença, chegamos a outra, ainda mais estranha: ao invés de apenas detectar a temperatura, os receptores da fosseta loreal enviam sinais para um nervo que chega no cérebro da serpente no mesmo local em que chegam os sinais vindos da retina do animal, formando um mosaico de representações que de fato significam a presença de uma visão térmica, em infravermelho. Atenção: não é como se as serpentes vissem calor como as cores que povoam nosso mundo humano, mas provavelmente, podemos pensar que elas enxergam o calor como outra categoria de representação visual ligada às formas das suas presas.



Pronto. As serpentes vêem infravermelho, calor. E elas conseguem isto com o auxílio da mesma família de receptores que sentimos o calor. Entretanto, sentimos na pele o calor, e ele não se manifesta com representação de nenhuma forma ou cor. Para nós, o calor não possui forma, para as serpentes, sim. Talvez para elas o calor seja percebido como um fluido que muda de forma de acordo com o recipiente... Será?


O mais intrigante nisso tudo é que a luz que os olhos absorvem são radiações eletromagnéticas não ionizantes, em outras palavras, as radiações da luz visível são da mesma natureza que o calor, com a única diferença que as radiações eletromagnéticas que advém de corpos térmicos estão em uma faixa de energia fora daquela visível (para os nossos olhos, pelo menos). Assim, podemos concluir com duas correlações possíveis: ou os olhos podem ser considerados uma espécie de “pele que vê”, ou a pele é um órgão capaz de sentir uma “luz invisível”... No caso das serpentes, isto não é um problema!



Assim que você sair do texto e resolver olhar ao redor, tente imaginar novas formas de ver ou de sentir: já pensou como seria se pudéssemos ver os sabores ou sons da mesma forma que as serpentes podem ver a temperatura? Será que teríamos um vocabulário especial para comunicar as impressões vindas deste novo sentido? Quando pensamos nisso, nos levamos às últimas fronteiras da capacidade do nosso cérebro. Se você pudesse criar um novo sentido, como ele seria?



 


 

Referência.: Yokoyama S, Altun A, DeNardo DF. Molecular convergence of infrared vision in snakes. Mol Biol Evol. 2011 Jan;28(1):45-8. doi: 10.1093/molbev/msq267. Epub 2010 Oct 11. PMID: 20937734; PMCID: PMC3108606.